Você já não aguenta mais a mais a
metralhadora de piadas e referências e os personagens hiperativos que compõem a
maioria das animações atuais? O traço perfeitinho e as cores fortes também não
te impressionam mais? Prepare-se, a temporada de desenhos quase idênticos nos
cinemas está aberta, mas você pode fazer um programa diferente em casa mesmo
alugando ou comprando O Castelo Animado (2004), mais um trabalho
sofisticado, inteligente e ao mesmo tempo de uma simplicidade ímpar de Hayao
Miyazaki, o responsável pelo também aclamado A Viagem de Chihiro. Aliás, ambos os filmes guardam semelhanças
visuais inegáveis, mas isso não é um problema. É sempre um prazer acompanhar
uma bela narrativa contada através de imagens de encher os olhos e personagens
fantásticos que diferem totalmente do maçante estilo de animação que impera
atualmente. Não que tais produtos sejam ruins, pelo contrário, existem vários
primorosos, mais já chegamos a um ponto que até os temas se repetem ou alguém
já se esqueceu da coqueluche que foram os desenhos cuja ambientação era o fundo
do mar? Para não puxar a sardinha totalmente para o lado oriental do assunto, é
preciso destacar que o filme aqui indicado guarda semelhanças com o enredo de A Bela e a Fera que apesar de ser um
clássico literário teve sua fama imortalizada pela Disney.
A história baseada no romance de fantasia
da escritora britânica Diana Wynne Jones gira em torno de Sophie, uma jovem
reclusa que trabalha na chapelaria da família e que um dia é amaldiçoada por
uma cliente sendo transformada em uma senhora idosa. Na realidade, Arechi é uma
bruxa ciumenta que um dia viu a moça na companhia do feiticeiro Howl e ficou
com raiva, mas o encontro entre eles foi acidental. Sophie nunca foi vaidosa,
mas se envergonha de sua aparência e decide ir embora da cidade em busca do
mágico, o único que poderia livrá-la da maldição. No campo ela encontra algo
inusitado: um estranho castelo que caminha livremente. Aceita no local repleto
de engenhocas e bugigangas pela bondade do garoto Marko e um pouco a
contragosto pelo demônio do fogo Calcifer, ela fica sabendo que é lá mesmo que
o feiticeiro vive, mas pouco tempo passa por lá. Não demora muito e ela percebe
que todos que cercam o mágico estão sob o efeito de um tipo de maldição e assim
ela decide ajudar não só a si mesma, mas a todos os seus novos amigos,
incluindo o Cabeça de Nabo, um espantalho que a seguia desde a saída da cidade.
Por fim, Sophie pela primeira vez se sente útil e amada de verdade e sua
presença torna-se essencial para manter o castelo em andamento e seus
habitantes vivos. Miyazaki então dá asas à imaginação e cria imagens belíssimas
e diálogos tocantes entre personagens fantásticos, sendo que a protagonista e o
homem por quem ela se apaixona vivem uma situação, como já dito, bem ao estilo
do romance entre Bela e a temida Fera. No caso, ambos buscam refúgio no castelo
para esconderem suas aparências, mas Howl enxerga na velhota a beleza de sua
juventude roubada.
Como pano de fundo deste romance
dramático, temos uma crítica às guerras, um ponto que é relevante, mas que não
se torna compreensível a todos. Muitos podem não entender o porquê de haver um
conflito entre feiticeiros e espécies de máquinas destruidoras, com direito a
uma cena marcante devido as cores escuras que destoam do aspecto aquarelado e
alegre do restante da produção. Howl se esconde no castelo justamente para
fugir da obrigação de lutar em algo que no fundo não leva a nada, apenas a mais
violência. Apesar de a narrativa ter contornos de melodrama, praticamente do
início ao fim é possível manter um sorriso nos lábios. Pode não ser uma
expressão ocasionada por piadas, mas com certeza pela satisfação de acompanhar
algo tão lúdico e envolvente ao mesmo tempo em que toca em alguns assuntos bem
interessantes e atuais, além da guerra é claro. A preocupação com a própria
imagem e aprender a lidar com as dificuldades são alguns deles. E tais temas são
desenvolvidos através de personagens riquíssimos que não são perfeitos ou
reféns de um arquétipo específico. A obra de Myiazaki não tem mocinhos ou
vilões claramente definidos. Todos têm suas qualidades e defeitos, seu lado bom
e também o questionável, mais um ponto que caracteriza este trabalho como uma
animação para adultos disfarçada com elementos suficientes para entreter as
crianças que podem perder o interesse a certa altura devido as duas horas de
duração, mas vale a pena insistir.
Voltando a falar da ausência de maniqueísmo
dos personagens, o diretor procura apresentá-los, até os mais fantasiosos, de
maneira a mostrar a dualidade deles. Sophie aparentemente é uma moça indefesa e
tímida, mas quando é amaldiçoada demonstra determinação, raiva, inveja, mas ao
mesmo tempo ainda mantém sua doçura e compreensão, assim como qualquer ser
humano que tem seus bons e maus momentos. Howl não é o par romântico estilo
príncipe encantado. Ele se transforma em uma valente ave na hora dos combates e
no restante do tempo é um ser que assume seu narcisismo exacerbado e afirma ser
incapaz de amar. O ditado dos opostos se atraem cai como uma luva. A vaidade do
homem contrastando com a auto-estima adquirida por Sophie diante de um
amadurecimento forçado sem contar com os anos de experiência que deveria
acumular antes de envelhecer. São tipos criados a dedo para Myiazaki explorar
os limites das personalidades em busca do mínimo de sentimento amoroso que
qualquer ser humano tenha. Até mesmo a feiticeira mostra seu lado mais fraco em
determinado momento, assim como Calcifer que se alterna entre a sisudez e a
compaixão mesmo não estando sob sua forma humana.
Além do texto primoroso e dos personagens
bens construídos, embora nem todos cativantes como é o caso de Howl, esta obra
serve para mostrar que a animação tradicional ainda pode e deve permanecer
viva. Claro que existem cenas em que o uso do computador foi necessário, mas
quase toda a produção foi desenhada e colorida quadro a quadro através do
talento manual de animadores. Desta forma, cada sequência de O
Castelo Animado parece um belo quadro e para quem pensa que os
personagens são desenhados no estilo de animes convencionais está enganado, com
exceção dos olhos grandes e que parecem lacrimejar a todo instante. Cada gesto,
expressão e até mesmo os objetos cênicos e as paisagens foram estrategicamente
pensados com algum significado emocional, crítico ou de personalidade. É óbvio
que não é em uma única vez que podemos apreciar as “entrelinhas” desta
obra-prima, já que certamente qualquer um se sentiria anestesiado com tanta
fantasia e beleza, mas o fato de querer experimentar esta experiência única já
é um grande passo. Dificilmente alguém resistiria a um repeteco ainda nestas
férias.
Um comentário:
Olha, não conhecia esse filme, mas eu confesso que gosto de animações japonesas, então certamente essa entrará na minha lista de filmes para ver.
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