Stephen King é praticamente uma grife
cinematográfica. Muitas de suas obras, geralmente ficções ligadas aos gêneros
terror e suspense, já foram adaptadas para as telonas, mas nem sempre de forma
bem sucedidas. Febre literária nos anos 80 e 90, várias obras do autor também
causaram frisson ao serem transformadas em filmes, principalmente ao chamarem a
atenção dos comitês de premiações que não deixaram passar despercebidas as
estréias de Um Sonho de Liberdade e A Espera de um Milagre, trabalhos com
veias dramáticas. Todavia, nos últimos anos King não tem tido sorte ao ceder os
direitos de seus livros para produtoras de cinema e até a mídia já está mais
fria em relação ao seu nome. Sendo assim, um bom projeto com seu nome nos
créditos praticamente passou em brancas nuvens. O Nevoeiro (2007) é um
filme B com pedigree. Frank Darabont, o responsável pelas adaptações dos dois aclamados
dramas do escritor, desta vez recorreu a um conto que foi publicado no Brasil há
décadas atrás no livro “Tripulação de Esqueletos” e arrancou elogios dos poucos
que assistiram. Mas sempre há tempo para corrigir injustiças. Bem, nem sempre
como fica comprovada na surpreendente conclusão deste suspense que termina melhor que o próprio livro que o originou.
A história é desenvolvida quase que totalmente
dentro de um único cenário, um supermercado, local onde um grupo de pessoas se
refugia de um estranho e gigantesco nevoeiro. O problema é que tal efeito
proveniente de uma tempestade esconde bizarras criaturas que parecem querer
exterminar a humanidade. David Drayton (Thomas Jane) é um dos indivíduos que está
enclausurado no local junto com o filho Billy (Nathan Gamble) e que acaba por
liderar os planos de fuga e de enfrentar a névoa, porém, seu instinto de herói
bate de frente com as idéias da Sra. Carmody (Marcia Gay Harden), um fanática
religiosa que com seus discursos apocalípticos acaba por fazer a cabeça de
muitos e ajuda a aumentar o pânico. Dessa forma, uma verdadeira guerra é
instalada dentro daquele espaço claustrofóbico entre as pessoas que desejam
lutar pela sobrevivência e aqueles que simplesmente aceitam a idéia de morrer
acreditando que essa é a vontade de Deus e que não se pode contrariá-la. É
justamente nesta inversão do medo que reside a força desta produção. O que
amedronta mais está dentro ou fora do mercado?
Deixando os monstros como coadjuvantes,
Darabont acerta ao jogar o foco de sua produção em um estudo sociológico no
qual acompanhamos a degradação do ser humano passo a passo conforme o medo do
desconhecido toma conta de todos. Claro que uma ou outra cena sanguinolenta
existe para provar que enfrentar o nevoeiro é extremamente arriscado e até
criaturas esquisitas surgem para aumentar ainda mais o pânico, mas o que mexe mesmo
com os nervos dos espectadores é o caos dentro do mercado, afinal não há como
fugir daquele espaço e há dúvidas se todos lá dentro são confiáveis. Dessa
forma, este filme não se resume a um simples suspense conforme uma pequena
sinopse pode indicar. Existe muito a observar e tirar proveito nesta produção e
de quebra sem deixar levar bons sustos.
Entre os personagens temos pessoas corajosas,
patéticas, frágeis, crianças, jovens, idosos, enfim um verdadeiro painel social
para analisarmos as mais diversas formas como os seres humanos enfrentam o
medo, mas a única certeza é que todos estão vulneráveis. Liderando o elenco
está Thomas Jane enfrentando a religiosidade exagerada da personagem de Marcia
Gay Harden. Ele ganha sua grande chance de provar que pode ser protagonista e
aproveita muito bem enquanto sua colega afirma mais uma vez seu poder
hipnotizante mesmo em papéis secundários, categoria na qual ela se destaca há
tempos. Seu papel totalmente crível certamente deve causar a ira de fanáticos
religiosos seja por considerarem uma interpretação caricata ou por a certa
altura a beata ser alçada ao posto de vilã entre aspas. Mexer com religião é
sempre uma empreitada espinhosa, mas Darabont é fiel ao conto e não se acanha
ao escrever diálogos que induzem as pessoas a acreditar que a aparição de misteriosos
tentáculos e aves que parecem pré-históricas são nada mais nada menos que
castigos divinos aos pecados dos homens. Em contrapartida, na boca de outros
personagens as críticas à religião correm soltas e sobra até para a área
política e de tecnologia, afinal nenhum poderoso poderia decretar o fim do
pânico neste caso e até a arma mais sofisticada não adiantaria, pois o inimigo
é desconhecido. Por outro lado, na hora do desespero um simples revólver
apontado para um ser humano insano pode ser a salvação ou piorar tudo. A essas
alturas, a insanidade já tomou conta de todos e fica difícil distinguir quem
está certo ou errado.
Nos últimos anos tem se tornado frequentes os
filmes que enfocam o extermínio da humanidade deixando de lado os efeitos
especiais e mantendo o foco em narrativas coerentes e alarmantes que colocam o
comportamento humano como principal vilão seja qual for o fator desencadeante
do estado de caos. O conto de King, embora escrito em meados dos anos 80, já
trazia elementos que nos remetiam a tal idéia e seu texto foi potencializado
pelas inserções de Darabont que melhoraram ainda mais o que já era bom. Na
realidade o diretor presta uma homenagem ao escritor H. P. Lovecraft, um exímio
pesquisador a respeito dos efeitos do sobrenatural na mente humana, cujos
trabalhos influenciaram King. Mantendo os elementos tradicionais das histórias
do “mestre do terror”, como a cidade pequena e aparentemente pacata do interior
que é sacudida por algo inexplicável, o cineasta constrói uma narrativa com pouquíssimos
deslizes e flertando com o estilo trash e o cabeça de fazer cinema. O
Nevoeiro acerta praticamente em tudo e só por sua conclusão amarga e
impactante merecia figurar entre os melhores títulos de suspense deste início
do século. Sua fraca divulgação e apelo junto ao público pode estar no fato de
ter sido lançado poucos anos depois do pavoroso A Névoa que é um remake do cult A
Bruma Assassina que por sua vez é inspirado no mesmo conto de King. Neste
gira-gira cinematográfico fique com a dobradinha King/ Darabont. Entretenimento
de qualidade e com sustância.
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