O cinema sempre encontrou
na vida de artistas plásticos uma rica fonte de inspiração, afinal são vários
os casos de pintores que viveram de forma excêntrica, embebidos em um clima
boêmio, sofrendo decepções amorosas ou com doenças e até mesmo tendo uma morte
um tanto dolorosa ou curiosa. A dica de hoje é nessa linha, mas guarda certas
particularidades que a destacam. Moça com Brinco de Pérola (2003)
recria a vida, ainda que enfocando determinado período, do pintor holandês
Johannes Vermeer a partir de uma de suas obras que dá título ao filme. Ele não
é um dos mais famosos artistas da área, aliás, pouco conhecido ao menos no
Brasil, mas essa ausência de informação torna a experiência de assistir esta
produção ainda mais interessante.
Sem saber qual o movimento
artístico ao qual ele pertence e tampouco sobre suas inspirações, o que uma de
suas obras poderia transmitir sentimental ou intelectualmente? Certamente é
essa indagação que levou o diretor Peter Webber, estreando com o pé direito no
cinema, a se interessar pelo romance de Tracy Chevalier que se baseia em uma
história verídica, porém, faz questão de lembrar que traz a tona os fatos
parcialmente. Resumidamente o enredo é uma especulação acerca da dúvida de quem
seria a garota com olhar e sorriso enigmáticos que aparece no tal quadro que
intitula o filme. A pintura é considerada por alguns estudiosos da área como o
equivalente para a cultura holandesa o que a “Monalisa” representa na história
da arte italiana. A biografia de Vermeer também é envolta em segredos e poucos
sabem algo de sua vida e até mesmo de seu trabalho. Aliás, quase a metade do
número estimado de suas telas permanece desaparecida. Sendo assim, o longa, tal
qual o livro, apóia-se em suposições baseadas em estudos sobre a época, mas as
afirmações não podem ser consideradas totalmente verídicas, um fato que não
trabalha contra o próprio filme, pelo contrário, instiga ainda mais o
espectador a procurar conhecer mais sobre o criador e sua arte.
A trama se passa no século 17
em Delft, na Holanda, quando a camponesa Griet (Scarlett Johansson) é obrigada
a deixar sua casa para ir morar com a tumultuada família do artista plástico
Johannes Vermeer (Colin Firth). A residência é habitada pela avarenta Maria
(Judy Parfitt), que nunca deixa de vigiar a vida da filha Catharina (Essie
Davis), a mãe dos vários filhos do artista. Em seu estúdio, Vermeer trabalha
arduamente com pintura em tela, mas leva meses para completar cada encomenda,
fato que dificulta a situação financeira da família. O artista passa a sentir
apreço pelo trabalho da nova criada e ela se revela apta para auxiliá-lo em seu
ateliê. O pintor começa a lhe ensinar noções de pintura, mas as aulas na
verdade são pretextos para os dois passarem mais tempo juntos. Conforme cresce
o interesse do rapaz pela moça, também aumentam os ciúmes de sua mulher. Griet
também atrai a atenção do rico Van Ruijven (Tom Wilkerson), com quem Vermeer
negocia seus trabalhos, e Pieter (Cillian Murphy), o filho de um açougueiro que
a corteja de forma tímida. Ruijven faz ao pintor uma encomenda sedutora: pede
que ele faça um retrato de Griet. Gananciosa, Maria autoriza o trabalho sem
pensar que isso alimentaria o ciúme da própria filha. A jovem criada, por sua
vez, aceita posar para o quadro, mas resiste a tentação e acaba vivenciando
suas vontades carnais com Pieter. A essa altura o artista e sua musa
inspiradora estão entregues emocionalmente um ao outro, porém, tal intimidade
crescente desperta inveja e brigas, podendo tornar-se um escândalo familiar que
ultrapassasse os limites das paredes da casa.
Esta produção tem como uma
de suas marcas o tom intimista e as emoções contidas. Os protagonistas não
precisam vivenciar uma cena de beijo ou um toque de corpos mais íntimo para
percebermos que há sentimento entre eles. Tudo é transmitido através de gestos,
olhares e expressões faciais que alcançam êxito graças a química existente
entre Scarlett e Firth que não precisam nem falar muito para tronar crível esta
relação que não chega a ser platônica, porém, jamais vivenciada em sua
plenitude. A atriz recebeu muitos elogios pela atuação e dividiu os holofotes
consigo mesma pelo seu trabalho em Encontros
e Desencontros em um ano em que despontava ao estrelato, mas o Oscar a
ignorou assim como faz até hoje. Por outro lado, a interpretação contida do
ator inglês, fartamente caracterizado para o papel, recebeu algumas críticas
negativas, certamente vindas de pessoas que não conseguiram adentrar na
atmosfera do longa. E olha que recursos para auxiliar nessa imersão é o que não
faltam. Cenários,
figurinos, fotografia e trilha sonora caprichados são de praxe em produções de
época, mas quando o assunto principal envolve o mundo das artes plásticas o
requinte e cuidados são ainda maiores e isso fica evidente aqui. A bela
reconstituição cenográfica faz um retrato da Holanda em 1665 e a direção de
fotografia teve a delicadeza de procurar dar a cada cena um aspecto de pintura
usando os mesmos tons de cores que causam os efeitos de luz nas obras de
Vermeer.
Merecidamente indicado a três Oscars técnicos (fotografia, direção de
arte e figurinos), ressaltando a excelência da parte visual, Moça com Brinco de Pérola não foi
feito para ser apreciado por platéias numerosas, o que fica claro pela
narrativa intimista, mas isso não significa que ele é um produto para a elite.
Qualquer pessoa pode se reeducar e afinar seu gosto cinematográfico, porém,
para isso é necessário vencer preconceitos e se entregar à história em questão.
O enredo pode parecer simplório, inclusive com pitadas fortes de referências ao
conto da Cinderela, obra do roteiro de Olivia Hetreed, mas esconde por trás de
seu verniz questões relevantes, como toda a pressão que o pintor sentia dentro
de sua própria casa, já que sua família só considerava seu trabalho quando ele
rendia dinheiro, e até da própria sociedade, no caso de não poder viver sua
vida da maneira que desejava para não ferir convenções. No fundo, esta é mais
uma versão materializada do sentido do ditado “os opostos se atraem”. Vermeer é
um homem das artes, tem o intelecto mais desenvolvido, tem posses financeiras medianas
e é respeitado na sociedade. Griet é pobre, sem estudo, não conta com apoio
familiar e nas ruas praticamente passa despercebida, no entanto, sua
inexplicável sensibilidade para alquimias de cores ou descobrir a melhor
angulação para pintar a aproxima do artista, ao contrário da esposa do mesmo
que cada vez parece mais distante e indiferente ao seu trabalho. Para
finalizar, é impossível não destacar a cena final quando é feita uma fusão
entre a imagem da serviçal posando para o quadro e a obra original. Sem dúvidas
um deleite para os amantes de arte e cultura.
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