Um filme que trabalha com temas espinhosos
como assassinato, pedofilia e traição e que deseja manter a tensão em alta do
início ao fim precisa obrigatoriamente conter tiroteios, sangue, cenas fortes,
muito palavrão e quem sabe o ato corajoso de colocar um ator-mirim para dar
mais credibilidade ao assunto do abuso sexual infantil. Bem, essa é a receita
básica dos diretores que se aventuram no mundo do suspense, mas quem tem um
currículo repleto de sucessos com certeza procura de todas as formas fugir do
lugar comum e surpreender às avessas. Investindo em uma excepcional mescla dos
gêneros drama e policial, Clint Eastwood construiu Sobre Meninos e Lobos (2003),
um dos filmes mais comentados da temporada de premiações de 2004 sem precisar
chocar o público com imagens, mas sim com um roteiro forte e interpretações
idem. Lançado em uma época em que o cinema estava no auge da invasão de magos,
duendes e outras criaturas fantásticas, obviamente este trabalho não fez
fortuna e até hoje muitos não tiveram coragem em assisti-lo. Não é a toa que a
carga pesada de sentimentos contida no enredo seja a grande marca desta obra,
agindo de forma negativa e ao mesmo tempo positiva para a vida útil do mesmo.
De qualquer jeito, este é um daqueles títulos que ficam martelando em nossa
cabeça até que arriscamos a sobreviver a esta imersão triste e angustiante
proporcionada por um filme reflexivo e relativamente de difícil digestão.
A história começa em Boston, nos EUA, em
meados dos anos 70 quando certo dia três crianças foram flagradas em meio a uma
travessura por dois homens que se apresentaram como policiais. Um deles foi
levado pela dupla sem que os outros interviessem por ele. O problema é que esse
passeio forçado não era um castigo até que um dos responsáveis pelo garoto
fosse buscá-lo, mas sim um sequestro no qual a vítima foi abusada sexualmente
por vários dias. Cerca de três décadas mais tarde o destino acaba por unir os
três jovens que agora são chefes de família e que há anos não mantinham contato
próximo, apenas cumprimentos à distância. Katie (Emmy Rossum), a filha de Jimmy
Markum (Sean Penn), está desaparecida e existem suspeitas de que ela pode ser a
jovem encontrada morta em um barranco. Quem comanda as investigações é Sean
Devine (Kevin Bacon), um dos meninos que escapou do abuso, que pouco a pouco
chega a evidências que o levam a suspeitar do antigo amigo Dave Boyle (Tim
Robbins), um homem amargurado que jamais se recuperou do trauma de infância.
Portanto, mais um fato doloroso marcará a vida destes três homens que terão que
enfrentar o passado para encarar o presente com maturidade, contudo, não é
apenas Boyle que leva uma vida suspeita. Markum é um comerciante que tenta
levar uma vida normal, mas tem um passado criminoso, ainda não está totalmente
livre destas amarras e parece disposto a fazer justiça com as próprias mãos.
A partir deste reencontro forçado pelo
destino, algo que felizmente não demora a acontecer, várias situações começam a
surgir para revelar um pouco mais sobre a personalidade e a vida de cada um
destes homens misteriosos e o espectador a essa altura já está fisgado e
curioso para saber como a trama irá se desenrolar, principalmente porque
algumas coisas ficam bem claras para o espectador bem antes do final, mas para
os envolvidos na trama não. Ficamos então na tensão de sabermos a verdade sobre
o caso da morte de Katie, mas nada podemos fazer a não ser acompanhar os
caminhos tortuosos que os personagens seguirão até o desfecho que, diga-se de
passagem, seria bem melhor se fosse encurtado. Não cabe revelar como tudo
acaba, mas digamos que Eastwood perdeu a chance de fechar com chave de ouro uma
obra excepcional, de forma a deixar para o espectador tirar a conclusão
definitiva sobre o futuro dos personagens. Completando o elenco temos Laurence
Fishburne como outro policial que participa das investigações e Marcia Gay
Harden e Laura Linney dando vida a Celeste e Annabeth, respectivamente as
esposas de Boyle e Markum. Devine também é casado, mas durante todo o longa ele
sofre com o abandono da mulher, um gancho pouco explorado pelo enredo.
Eastwood, como bom ator que é, sabe bem o quanto é infeliz um intérprete que é
mal aproveitado e por isso ele distribuiu entre todo o elenco personagens
fortes e com importância, assim as presenças femininas não são meros enfeites
em um longa que poderia exalar testosterona e descambar para o velho clichê das
perseguições e tiros para tudo quanto é lado. Celeste se destaca graças ao
conflito que vive com o marido, o que lhe gera dúvidas, angustias e
insatisfação com o casamento. Já Annabeth é uma mulher que aparentemente é
apática e não tem grandes momentos, o que talvez levou o diretor a dar a tal
esticadinha no final para garantir uma sequência digna à personagem e que nos
faz entender sua importância na vida de Markum.
Se as mulheres estão aqui para dar um
“respiro” à obra, não há como negar que é na ala masculina que o bicho pega e
onde os diálogos mais arrepiantes se encontram. Penn antigamente se mostrava
avesso as premiações, mas desta vez não teve como escapar de comparecer na
festa do Oscar, pois muito antes da lista de indicados ser divulgada seu nome
já era dado como o dono da estatueta. No papel que assume aqui, o ator precisou
trabalhar com diversas nuances para transformar seu personagem crível. Em sua
interpretação está uma das grandes surpresas da trama. Inicialmente ele parece
um desesperado pai de família sofrendo com a morte de um dos filhos, mas quando
descobrimos o seu passado criminal aliado a seu comportamento já começamos a
ter dúvidas a respeito de sua redenção. Tão bom quanto ele está Robbins como um
adulto perturbado pelas lembranças tristes da infância que ora nos faz sentir
sua amargura e ora nos faz sentir repulsa conforme algumas dúvidas vão sendo
levantadas a respeito de suas atividades na noite do assassinato de Katie. Os
dois atores estão estupendos e só vendo suas atuações para compreender porque
suas inscrições a prêmios foram classificadas como ator principal para Penn e
coadjuvante para Robbins, uma tática boa do estúdio que apostou no talento de
dois grandes astros. Se houvesse duelo entre os dois em uma mesma categoria
certamente estariam sendo feitas grandes injustiças, afinal um sairia das
festas de mãos vazias. Quem ficou de fora da badalação foi Bacon que talvez
nunca tenha sido reconhecido como um bom profissional, mas não por falta de
talento e sim por escolher (ou ser obrigado) a aceitar roteiros tolos. Talvez
por viver o investigador do caso sem ter a tira-colo um segundo conflito bem
trabalhado, seu papel pode parecer diminuto perto dos companheiros de elenco,
mas ele o interpreta com competência. A relação entre os três ex-amigos exala
desconfiança e raiva, mas talvez em suas atitudes, por mais controversas que
possam parecer, pode ser que o amor e o desejo de justiça as motivem.
O roteirista Brian Helgeland, que foi
bastante premiado pelo enredo de L. A. –
Cidade Proibida, conduziu muito bem a adaptação do livro “Mystic River”
(título original do filme), escrito por Dennis Lhane, de modo que o espectador
que gosta realmente de um bom filme não conseguirá desgrudar os olhos da tela,
mesmo quando antecipadamente já desata por conta própria alguns dos nós da
trama. O grande tema deste trabalho é fazer uma crítica à banalização da
violência, seja pela pedofilia, assassinatos ou, a pior de todas, recorrer a um
ato criminoso para fazer justiça com as próprias mãos, ou seja, um círculo
vicioso no qual o “justiceiro” é tão torpe quanto o próprio algoz. Em tempos em
que a sociedade está sem parâmetros de valores morais ou você coloca uma pedra
em cima de um assunto doloroso ou passará a nutrir um mal dentro de si mesmo
com qual dificilmente alguém sabe lidar de maneira pacífica. Sobre
Meninos e Lobos fala da explosão destes sentimentos negativos, seja com
uma arma em punho ou simplesmente através de palavras, e como tais ações podem
machucar amigos, parentes, desconhecidos e, principalmente, ao próprio autor do
crime. Tingindo seu trabalho de tons azulados e acinzentados, reforçando a
melancolia presente na produção e que atinge em cheio ao público, Eastwood
provou mais uma vez não ter medo de ser criticado ou de repulsas e presenteou o
mundo com uma obra visceral onde não há vilões e mocinhos, tampouco o bem e o
mal, mas sim personagens e situações críveis que retratam um pouco da
vulnerabilidade a que estamos expostos. Final feliz aqui? Pode até existir, mas
tudo dependerá do ponto de vista.
Um comentário:
Foi o meu primeiro Eastwood, e até hoje ele consegue me impactar e emocionar como poucos filmes o fazem.
http://avozdocinefilo.blogspot.com.br/
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