Dois jovens
pertencentes à alta sociedade nova-iorquina fazem de tudo para manter as
aparências de que são pessoas idôneas, mas por debaixo dos panos formam uma
dupla irremediavelmente depravada que se diverte com joguinhos de sedução e
destruindo as reputações de seus desafetos. Por essa breve descrição realmente Segundas
Intenções (1999) não parece ser um filme muito
atrativo, mas quem já lhe deu um voto de confiança não se arrependeu. Quer
dizer, isso se tais pessoas tiverem até uns trinta e poucos anos e ainda estarem
na fase de curtir a solteirice. Para quem já constituiu família digamos que não
deve ser muito agradável pensar que futuramente sua doce filhinha pode cair na
lábia de um pervertido, que drogas e sexo farão de certa forma parte do
cotidiano destes adolescentes e por aí vai. Este drama voltado para o público
jovem estreou sem grandes expectativas, mas rapidamente caiu no gosto dos
americanos e pouco a pouco foi colecionando fãs em todo o mundo, sendo que hoje
a produção é considerada um dos cults movies dos anos 90. Se os grandes filmes
para adolescentes datados de uma década antes, geralmente comédias e aventuras,
até hoje tachamos como produtos típicos de sessão da tarde, o longa em questão
passa bem longe desta classificação por conter cenas fortes, diálogos
provocantes e um intenso clima sensual. Sinal dos tempos. A ingenuidade
massacrada pelo amadurecimento cada vez mais precoce.
A produção
realmente tem pretensões bem maiores que somente entreter, quer conquistar
também o público adulto com uma trama envolvente que possa trazer certas
reflexões que talvez em uma primeira apreciação podem não ser totalmente
identificadas. Para tanto, a inspiração para o enredo veio de um clássico
literário europeu já bastante explorado pelo cinema, “Les Liaisons
Dangereuses”, escrito por Choderlos de Laclos em meados do século 18. Sua
versão cinematográfica mais famosa, Ligações
Perigosas, até hoje é considerada uma das grandes obras da década de 1980. Tanto
para quem já assistiu ou quem nunca viu nem alguns poucos minutos deste
trabalho do cultuado cineasta Stephen Frears, pode parecer muito estranha a
opção de trocar os cenários do Velho Continente pela agitada e moderna Nova
York, além do fato das personagens da elegante burguesia serem substituídas por
jovens ricos e rebeldes que não tem com o que ocupar o tempo ocioso, porém, o
resultado dessa adaptação é surpreendente. Causa ainda mais espanto saber que o
homem por trás destas modificações na época tinha apenas 23 anos e estreava na
direção. Roger Kumble, também responsável pelo roteiro, fez seu debut em
Hollywood em grande estilo, mas obviamente não é digno fazermos comparações
entre seu clássico moderno adolescente com o clássico oitentista destinado a
platéias mais maduras, ainda mais sabendo que ele se deixou empolgar demais com
os elogios e os rendimentos financeiros e cometeu o equívoco de realizar uma
sequência tão desnecessária que até mesmo o elenco do original preferiu ficar
de fora.
Kumble, apesar
de adicionar algumas situações inéditas e incorporar modificações bem-vindas,
manteve-se fiel ao texto de base sem deixar que seu trabalho ficasse datado. Os
grandes vestidos cheios de babados foram transformados em modelitos curtos,
justos e decotados, mas a perversidade de certos personagens e a ingenuidade de
outros se mantiveram intactos. Sebastian (Ryan Phillippe) e Kathryn (Sarah
Michelle Gellar) são meio-irmãos devido a união de seus pais, mas não são
parentes de sangue. Eles cresceram assediando um ao outro e são adeptos de
jogos perversos que envolvem sedução e humilhação, além de praticamente
controlarem a vida social de muitos de seus colegas de escola. Ele tem a fama
de ser um incrível sedutor e gosta de manter tal reputação enquanto ela prefere
fazer o gênero moça recatada e de família, embora ela seja tão imoral quanto o
rapaz. Quando seu namorado a troca pela inocente Cecile (Selma Blair), Kathryn
decide se vingar e desafia Sebastian a seduzir e acabar com a reputação da
moça. Ele considera a proposta muito simples e que não lhe traria prazer algum.
Eis que o jovem fala para a irmã sobre Annette (Reese Witherspoon), a filha do
futuro diretor da escola preparatória que irão frequentar. Ela pretende se
manter virgem até o dia em que se casar e afirma que seu namorado compreende e
aceita seu desejo. Para Sebastian, seduzir tal jovem puritana é um desafio
digno e assim estes irmãos entram em um acordo. Se ele não conseguir levar
Annette para a cama até o final do verão, seu valioso e luxuoso carro ficará
com Kathryn, mas caso ele vença a aposta poderá desfrutar de uma noite de sexo
com a irmã, o grande sonho de sua vida já que teoricamente o envolvimento entre
eles é proibido e arruinaria suas reputações. Enquanto isso, Kathryn continua
com seu plano de humilhar sua ingênua rival, com direito a uma sequência que
causou frisson na época: um beijo lésbico apresentado nos mínimos detalhes. Uma
ousadia e tanto, mas uma cena longe de ser vulgar e que poderia até mesmo
sintetizar a ideia do título, tanto o original quanto o brasileiro, felizmente
ambos bem escolhidos.
Apresentado o
elenco, fica claro que um dos pontos positivos da produção é o elenco jovem,
talentoso e promissor, todos em plena ascensão na época, porém, o tempo passou
e parece que só beneficiou Reese que acabou se tornando uma das queridinhas de
Hollywood, ganhou vários prêmios nos anos seguintes, incluindo um Oscar, e está
sempre em evidência. Aliás, ela e Phillippe se apaixonaram durante as
filmagens, casaram e tiveram dois filhos, mas o relacionamento acabou após
praticamente uma década de convivência. É certo que o trio de protagonistas não
tem do que se queixar neste trabalho. Todos ganharam papéis de destaque que
cresceram emocionalmente e psicologicamente ao longo da narrativa. Sarah
personifica a crítica ao comportamento dos jovens americanos de classe média ou
alta. Por mais que tenham tudo que o dinheiro pode comprar, a plena felicidade
eles nunca tem e por isso usam como válvula de escape as drogas, o sexo e a
promoção da infelicidade alheia. Phillippe encarna um personagem não muito
diferente disso, mas ele é um caso que ainda tem solução como nos prova a
narrativa através de seu envolvimento com a virgenzinha vivida por Reese, esta
que praticamente todo o filme é tratada como um objeto, mas sua passividade só
agrega para a virada de sua Annette já na conclusão, o ápice total desta obra ao
som do grupo The Verve com a canção “Better Sweet Symphony” embalando um
momento de arrepiar e inesquecível. Aliás, a trilha sonora como um todo é excepcional,
casa bem com o conteúdo e personagens e por anos o CD com as músicas foi um dos
mais vendidos equiparando-se às vendas da melosa seleção de canções de outro
clássico da década de 1990, Cidade dos
Anjos.
Com diálogos
afiados, ritmo agradável, fotografia e direção de arte caprichados, além de um
roteiro deliciosamente malicioso que une com perfeição drama, romance e
erotismo, Segundas Intenções continua conquistando fãs e tendo
repercussão bem maior que os principais vencedores do Oscar daquela época (realmente
precisamos fazer certo esforço para relembrar os laureados). Sem carregar
elogios da crítica especializada e tampouco prêmios, somente um troféu de
melhor beijo conquistado no MTV Movie Awards, obviamente o lésbico, esta
produção merece ser conhecida pelas novas gerações e até mesmo revista por
aqueles que um dia se chocaram ou aplaudiram esta interessante mistura de
elementos clássicos com a modernidade, do chique com o popular. Tudo bem que a
aposta entre os meio-irmãos é um tanto doentia, mas isso é apenas um detalhe
que não atrapalha em nada a apreciação deste filme. Como já dito, provável que
quem já passou dos trinta anos não se envolva totalmente com tal enredo, a não
ser que esta obra seja uma boa lembrança de sua adolescência, ainda que boa
parte dos diálogos e situações apresentados não seja recomendável para menores
de 18 anos. Todavia, o retrato que faz da juventude contemporânea, mesmo sendo
uma produção de 1999, movida ao materialismo e a sexualidade exagerada, tratam
de colocar este filme em um patamar acima da média, uma obra que modestamente
marcou uma geração, mas que continua atemporal. Vale a penas conferir este
pequeno tesouro do final do século passado, um tempo em que infelizmente já
verificávamos que imagens e sons de última geração soterravam boas histórias.
Ok, este não é um enredo que vale ouro, mas diante do que já nos era
apresentado parece um trabalho de gênio. De fato, uma mente brilhante e jovem
que soube captar exatamente o que a turma da sua faixa etária desejava e ainda
deseja em um filme que atenda suas expectativas e compreenda suas cabeças.
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